Por Natalino Salgado Filho *
O confrade da Academia Nacional de Medicina, J. J.
Camargo, em mensagem gravada em podcast e repercutida num grupo de whatsApp,
definiu a sensação de muitos, nestes dias de assolação pela Covid-19, como inanição
de afeto. Ele se referia ao que acompanha, ou deveria acompanhar, todos os
atendimentos que nós prestamos aos nossos pacientes, numa consulta, em
procedimento ou cirurgia: o caloroso aperto de mãos, o abraço sincero, o ombro
amigo. De repente, a quarentena nos retirou essa possibilidade. E os pacientes
sentem falta da proximidade com seu médico ou médica.
Como profissional da Medicina, há mais de 40 anos,
estou acostumado a lidar com dados epidemiológicos. Mas a geração de
profissionais, da qual faço parte, jamais viveu algo semelhante ao que estamos
enfrentando. Os números - além de representarem pessoas, vidas, famílias,
emoções - são despejados sobre nós, diariamente, sob a instantaneidade do
famoso tempo real das tecnologias virtuais. Gráficos e curvas sobem como
foguetes em direção ao infinito, ignorando a vida paralisada, mas frenética,
dentro dos centros de saúde.
Em contraposição à
avalanche de informações, as condições materiais se mostram aquém do desafio. O
que temos no front dos hospitais são profissionais que assumiram um lugar de
heróis que resistem, a despeito de suas próprias fragilidades. Sob a urgência
destes tempos, homens e mulheres, aprendendo as lições do poeta Djavan,
guerreiam para superar suas próprias dificuldades e desafiam o ter-que-ter-pra-dar. E aqui me refiro não só à carência material,
ou à expertise técnica de cada um; aos necessários artigos que valem quase
tanto quanto uma vacina ou medicação específica para a doença, mas também à
esperança, ao otimismo e à resiliência ante o brutal desafio. Refiro-me, também
e principalmente, ao necessário afeto.
Nossa cultura, certamente, está sofrendo muito.
Nós, que somos definidos pela expansividade afetiva, passamos a sofrer de inanição
de afeto. Gostamos de abraços e beijos, expressões carinhosas de afeição.
Estamos acostumados com aqueles pequenos toques durante uma conversa. Mas este
tempo de desafios extraordinários se agrava com os afastamentos recíprocos e
com a atitude imprescindível de isolamento social.
Entretanto, não estamos alijados das palavras, da
capacidade de manifestação de interesse e da boa preocupação com aqueles que
amamos, respeitamos e queremos bem. Precisamos de palavras agora mais do que
nunca, para marcarmos presença onde não podemos estar. Um dos mais cultuados
pensadores da atualidade, o filósofo sul coreano Byung-Chul Han, alerta para a
necessária proximidade, item que apenas os seres humanos podem desfrutar em sua
plenitude, o qual já vem correndo risco com os likes do mundo virtual.
Na verdade, uma palavra não é igual ao abraço
físico. Mas o silêncio do esquecimento ensina que ser lembrado por alguém é um
bálsamo. Então, se os corpos não podem se tocar, os intermediários da
tecnologia podem e muito nos ajudar neste momento. As ligações, mensagens,
lives podem ser utilizadas de maneira a preservar a relação de amizade e
companheirismo; as consultas por telemedicina, já regulamentadas, e o trabalho
remoto têm efeitos muito positivos para alimentar a presença do outro nos
diversos âmbitos.
Quero destacar aqui o rico espaço de interação
disponibilizado pela Academia Nacional de Medicina, nesta época de ausência de
contato físico. Os debates virtuais, a troca de reflexões têm nos aproximado
ainda mais, numa corrente invisível de fraternidade e as intenções que a movem
são verdadeiras e reais. O confrade da ANM Sérgio Novis, numa sensível fala
disponível em podcast, lembrava-nos de qualidades que nunca devem ser
esquecidas pelos que praticam a Medicina, sendo as mais importantes: a atenção
e o interesse sincero pelo paciente.
Trabalho remoto,
novas formas de praticar o comércio e de aprender um conhecimento; imersões
culturais, adoção de estilo de vida menos perdulário, tudo nos indica que a
pandemia pode ter estabelecido outras formas de vivermos o cotidiano, sem
jamais esquecer o princípio que nos define como humanidade: médicos ou não,
existimos para fazer o bem, espalhar a solidariedade e cultivar a
compaixão. Que essas sejam as marcas de
um novo tempo para uma sociedade ainda melhor, mais justa e fraterna, onde cada
um aprenda a se guiar nos arredores do amor, único lugar onde
conseguimos, por meio do afeto, oferecer coragem, quando o que temos é medo.
*Reitor da UFMA,
Titular da Academia Nacional de Medicina, de Letras do MA e da AMM.
Nenhum comentário:
Postar um comentário